domingo, 29 de março de 2009

A VOZ DO PASSADO, NO PRESENTE, ECOA O FUTURO


“A história oral de vida é uma histórica pública para os ouvidos, espécie de carnavalização onde desaparece a diferença entre atores e espectadores, ou seja, entre sujeito e objeto”. (Mikchail Bakhtin).

Uma das vozes do passado que ecoa pelos barracões, e que não deve jamais deixar de ser ouvida, pela raridade e riqueza histórica, e que contextualiza a evolução das escolas de samba, entre elas a Vale Samba, é a da Porta-Bandeira Maria dos Prazeres Oliveira.

Negra e Mãe-de-Santo, Dona Maria dos Prazeres foi Rainha de Bateria, Porta-Bandeira e Baiana da Escola de Samba Unidos do Herval, e o seu legado para o carnaval de desfile de escolas de samba é precioso.

O pai de Dona Maria dos Prazeres, Manoel de Oliveira Nunes, originário da Bahia, foi um dos precursores da cultura negra e carnavalesca na região do Vale do Rio do Peixe. O pai da Porta-Bandeira trabalhou alguns anos no Rio de Janeiro com um dos mais importantes personagens do carnaval carioca: o Pai-de-Santo Mano Elói.

Mano Eloi, que era compositor, músico e intérprete, fundou três escolas de samba no Rio de Janeiro: Prazer da Serrinha, Deixa Malhar e Vai Como Pode, as quais originaram, posteriormente, Portela e Império Serrano.

Quando deixou o Rio de Janeiro, Manoel de Oliveira fixou residência em Herval d`Oeste, onde montou, ainda na década de 30, o primeiro Terreiro de Candomblé, chamado Casa Nova Era, que mais tarde deu origem ao Clube dos Negros. Confira, a seguir o depoimento de Dona Maria dos Prazeres.

Olha, de quando eu era menina, e das lembranças do que meu pai falava, dos tempos da casa Nova Era, que era lá pros lados da Coxilha, subindo por uma trilha que saia da rua São Paulo, eu lembro de alguns personagens que ajudaram a construir uma história interessante. Entre eles eu posso citar o Saulo Sapateiro; um sapateiro, boêmio, e que gostava de samba. E ele até fazia uns versinhos. Um deles, que eu me lembro bem, dizia: Eu nunca sonhei, sempre trabalhei, e foi assim que eu quis. Eu sou sapateiro, não tenho dinheiro, mas eu sou feliz. (cantando)

Tinha também o Lazinho, que gostava muito de cantoria, e estava sempre com o inseparável amigo Altemar. O Altemar, que gostava de tocar tambor, era um negro muito místico e festeiro, e falava sempre num tal de “sincopado de aquarela” e “civilização do legado”, que eu sei lá o que era. Mas, era muito engraçado. ( rindo)

Outro que eu me lembro era o Seu Mazurek. Era um polaco, que trabalhava de mascate. Ele tava sempre com o pessoal da batucada, e era muito sorridente. Todo mundo gostava dele. Ele, que naquela época já tinha talão de cheque, pra se exibir, pra qualquer coisa ele dizia: Mazukek assina cheque....! (rindo)

O meu pai falava também do seu Dendê, que era Pai-de-Santo, mas eu tenho pouca lembrança dele. E do seu Javé, que era um “preto velho”, abugrado; meio negro,meio índio. Os dois também gostavam muito de batucada e de samba. E outros tantos, de outros tempos, como o coronel Chiruca, o Lilico Galvão, e o Jacaré de Bronze. O coronel Chiruca, que andava sempre por aí, e tinha amizade com o pessoal da polícia, às vezes avisava o Seu Javé quando ia ter uma batida policial lá pros lados do terreiro. Então, essas pessoas, mesmo em épocas diferentes, tiveram muitas ligações com a Vila Operária, com a Estação Ferroviária, com os Terreiros e com o Carnaval”.

Com base nesse trecho do depoimento de Dona Maria dos Prazeres (que é parte de uma longa conversa de mais de duas horas, por mim gravada há muitos anos atrás), eu fiz um samba de enredo, que fará parte do Dvd que estará encartado no livro Joaçaba, Samba. E Faz Escola. Desde 1934, a ser lançado em breve. A letra e a melodia foram criadas também há muitos anos atrás e, propositalmente, num estilo dos sambas de enredos antigos. Confira a letra, e também os áudios do depoimento e do samba.

(Entre a rua...)

Entre a rua São Paulo e a Coxilha há uma trilha ...de um legado do passado, que tinha o seu próprio enredo....sem ser segredo, mas muito reservado.

Ali.....a “Nova Era”, era um local de encantaria, onde a batucada rompia a madrugada no ofício da magia. (da magia...!) No louvor estava Lazinho ... E com ele Altemar a cantar.... Batendo com fé o tambor, fazendo o terreiro dançar.

Rito antigo.....templo novo, Povo de outra religião, Seu Torquato Mazurek, Sorridente assina o cheque, Depois da celebração.

(Refrão) (bis)

Recordei, pensei, O que eu sempre quis, Paulo Homem, sapateiro, Sem dinheiro, foi feliz! (mas foi..)

Foi no terreiro de Maria dos Prazeres, Que os afazeres ....foram traçados, Viram o desfilar da imponente.... “Civilização do Legado”. E a Estação do Trem agora era, Um imaginário transformado, O Bairro Operário prospera; Impera um mundo novo encantado: Um “sincopado de aquarela”, mostra o futuro revelando o seu passado.

(Refrão) (bis)

Eu fui ver de perto a história bem vivida, e vi aberta a trajetória de uma vida.

Até então pensar que Joaçaba, avizinhada de festas típicas alemãs e italianas, tinha carnaval de desfile de escola de samba era, até certo ponto, desconcertante. Mas, como o presente só tem lógica se houver um olhar para o passado, nesse caso ele também é imprescindível, pois fica evidente que a semente que fecundou o fruto das escolas de samba de Joaçaba foi plantada no distante passado dos tempos Contestados, já que foi pelos trilhos do trem de ferro que chegaram os primeiros iniciados no batuque, cooptados pelos primórdios e tímidos terreiros de Candomblé.

Muitos dos integrantes dos blocos carnavalescos mais recentes, dos anos 50 e 60, que se intitulam precursores das escolas de samba, não têm noção de que eles próprios já eram frutos de um embrião carnavalesco bem mais antigo, transplantado para a região do Vale do Rio do Peixe por uma corrente que tinha fortes elos com a essência dos ingredientes básicos do carnaval: batuque e candomblé.

Esta linha histórica, mesmo que tênue, que faz o elo entre o berço das escolas de samba, o Rio de Janeiro, e o Vale do Rio do Peixe, tem uma expressiva contribuição cultural para Joaçaba, da mesma forma como foi a comprovada ligação cultural das escolas de samba cariocas com as raízes afro-religiosas do recôncavo baiano, através dos descendentes de escravos que migraram para a cidade maravilhosa.

O carnaval de desfile de escolas de samba de Joaçaba, portanto, é fruto de um embrião antigo, transplantado para essas terras ainda nos anos trinta por descendentes afros, originários dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos e Bahia, e que vieram trabalhar na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul. As sementes plantadas por esses batuqueiros ancestrais vingaram e as nossas escolas são frutos que hoje já ostentam uma forte raiz.

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