segunda-feira, 23 de agosto de 2010

HERVALÊS: CONCEITUAÇÃO HISTÓRICO-LINGÜISTÍCA

O chamado "hervalês", falado pelos meninos da Estação do Herval, nos anos 50 e 60, analisado sob a ótica da lingüística histórica, é uma reprodução deturpada de um movimento anárquico-lingüístico internacionalizado, a partir da França, nos anos 30. A origem do movimento foi, na verdade, o Cours de Linguistique Generale (Curso de Lingüística Geral), de autoria do pai na lingüística moderna, o suíço Ferdinand de Saussure. Os seus estudos criaram um anagramático na prosa e poesia greco-latina, que tinham origem na teoria de que, já na antigüidade, a construção dos versos eram feitas em cima de determinados anagramas, baseando-se em metrificações com regras pré-estabelecidas sobre quantidades equivalentes de consoantes e vogais e da disposição das letras formadoras do anagrama nos versos.(STAROBINSK, Jean. As palavras sob as palavras. Ed. Perspectiva).

O irmão de Ferdinand, René de Ferdiand, posteriormente, no início do século XX, criou o IDO, uma versão reformulada e simplificada do Esperanto. O nome "ido" tem origem no sufixo esperantista id, que equivale a "descendente, continuador" e da vogal o, desinência de substantivo, e as letras “I. D. O” são também abreviatura de “Idiomo Di Omni” (Idioma de todos). A língua Ido herdou muito da gramática do Esperanto, e em muitos casos o vocabulário é idêntico, e alguns idistas iniciaram outros projetos lingüísticos, de tendência mais naturalista: as línguas Occidental e Novial.

René de Saussure (nascido em Genebra em 1868 e morto em Berna em 1943) foi um esperantista suíço e um professor de matemática que escreveu obras importantes sobre Esperanto e inter-lingüística. Sua obra mais importante é uma análise da lógica da formação das palavras em Esperanto: Regras fundamentais da teoria da palavra em Esperanto. Tal como o Esperanto, o Ido tem como principal objetivo uma síntese das principais línguas européias existentes, com um vocabulário relativamente reduzido, uma gramática simples e consistente, sendo assim teoricamente fácil de aprender. Usa as vinte e seis letras latinas do alfabeto inglês, sem o uso de acentos. O Ido assemelha-se às línguas românicas e é confundido, à primeira vista, com o italiano ou com o espanhol.

Em se tratando de antigüidade com relação ao tema, vale ressaltar que a mais antiga e importante fonte de um famoso palíndromo bidimensional, também conhecido como fórmula Sator, é uma inscrição latina que foi encontrada nas ruínas de Herculano e Pompéia. Este quadro é considerado um palíndromo perfeito, pois é absolutamente simétrico, podendo ser lido de quatro maneiras: da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima.

A onda dos anagramas, palíndromos e anacíclicas, em determinado momento, espalhou-se, e foi absorvendo penduricalhos mundo afora, e como tantas outras curiosidades alusivas à escrita e a fala, ela também chegou ao Brasil, e justamente numa época em que o país consolidava a sua malha ferroviária; entre elas a que ligava o Sudeste ao Sul, através da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul.

E qual é o motivo do linguajar dos maleiros e engraxates de Herval d´Oeste entrar nessa história? Bem, entra, a princípio, por três motivos: o primeiro deles é porque Herval d´Oeste, como se sabe, foi por muitos anos uma das referências da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul, já que sediava uma das estações estratégicas da ferrovia, e numa região que, por algum tempo, e num passado não muito distante, foi palco de uma guerra: a Guerra do Contestado. Por esse motivo, o Município era, até certo ponto, privilegiado com relação aos demais no tocante as informações e novidades que chegavam dos centos maiores. O segundo motivo é que, a exemplo de outras localidades recortadas pela estrada de ferro, Herval d´Oeste tinha, entre os trabalhadores da ferrovia, imigrantes poloneses e ucranianos, (e que, erroneamente, todos eram chamados de "polacos", e não apenas os poloneses. E o terceiro motivo, que tem ligações com os dois outros anteriores, é que veio morar em Herval d´Oeste, nos anos 40, um jovem, cujo apelido era "corvo", que se tornaria, mais tarde, um dos "autores" do linguajar que ficou, posteriormente, conhecido como "hervalês".

Corvo era oriundo do Rio Grande do Sul, e segundo se sabe, a sua família era agregada de uma família ucraniana, e ele desde a infância ouvia um linguajar estranho, que era uma mistura de esperanto, polaco e português, falado pelos patrões dos seus pais. Observa-se que os poloneses e os ucranianos, em geral, sempre tiveram muitas dificuldades em falar outras línguas, e a que eles mais se adaptavam era o esperanto, língua esta que tentavam usar quando precisavam se fazer melhor entender por outras pessoas, principalmente na época em que o governo brasileiro proibiu o uso das línguas alemãs, italianas, polonesas e ucranianas pelos imigrantes. Ainda no Rio Grande do Sul, e muito criança, Corvo aprendeu algumas palavras da mistura de ucraniano, polonês, esperanto e português, e outras que as crianças de sua idade aprendiam com as brincadeiras originadas nos anagramas; e, ao vir para Herval d´Oeste, juntando-se à garotada de sua idade, começou a estimular a criação de novas palavras, tarefa essa que dividiu com o amigo Tupira (Tupirajara Adail), que ainda mora em Herval. Tupira, aliás, além de ser um dos "mentores" do "hervalês", também foi o criador do que podemos chamar de a primeira escola de samba de Herval d´Oeste: a Bando da Lua, que a princípio era uma charanga para animar partidas de futebol, mas que depois passou a ser, praticamente, uma escola de samba, animando os foliões de Herval d´Oeste e Joaçaba no período do carnaval.

A oficialização da criação do linguajar pelo Corvo e pelo Tupira está documentada em uma Monografia produzida por Alcides Volpato, como trabalho de encerramento do Curso de História da UNOESC-Universidade do Oeste de Santa Catarina, intitulada "O Linguajar dos Maleiros/Engraxates de Herval d´Oeste e Joaçaba". O trabalho, único a conceituar de forma acadêmico o linguajar, é uma importante contribuição acadêmica para a preservação da memória desse fato, haja vista que, até então, havia apenas relatos orais de testemunhos de alguns falantes da época, sem nenhum registro oficial.

Há algum tempo atrás, movidos pela reminiscência, um grupo de falantes do hervalês aventou a possibilidade de se criar um dicionário do linguajar, mas o que resultou foi apenas um glossário de palavras, que à época eram mais faladas e que ainda permanecem na memória dos mais antigos. Entretanto, por absoluta falta de consistência e solidez lingüística, seria, realmente, impossível se produzir um dicionário com um leque de vocabulário capaz de dar sustentação a uma fluência idiomática, a exemplo de alguns dialetos existentes, aqui mesmo no Brasil. Por outro lado, e até por falta dessa base, há muitas divergências entre os próprios falantes do "hervalês" com relação a algumas palavras ou termos, com um grupo defendendo uma forma; e outro se opondo a ela, e isso acaba criando mais dificuldades ainda para a sistematização do linguajar. O trabalho de conclusão de curso de Alcides Volpato, porém, mesmo não tendo uma pesquisa mais aprofundada sobre a origem do linguajar, é um instrumento acadêmico e valioso, e que contribuiu com os registros do processo histórico regional.

"Foi o Corvo que trouxe algumas palavras do Rio Grande do Sul pra cá, e aí a gente começou a inventar outras", relata Tupira. Outro falante do hervalês, Adão Padilha, acrescenta: "a gente ia jogar bola lá no campo do Baréa, e depois ficava um tempão criando e treinando novas palavras". (O Linguajar dos Maleiros/Engraxates de Herval d´Oeste e Joaçaba - Alcides Volpato - UNOESC-SC).

Em um depoimento que me foi dado por Dona Maria dos Prazeres, há muitos anos atrás, e gravado em áudio, há, também, uma "pista", sobre a origem do "hervalês" e a autoria dele creditada ao Corvo. "Eu sabia algumas coisas do Corvo, porque eu conheci a avó dele, que veio do Rio Grande do Sul e morou em Herrval d´Oeste, e depois foi para Campos Novos, lá para a Invernada dos Negros, onde eles tinham parentes. O nome dela era Maria Conceição de Jesus, mas conhecida por Mãe Pretinha, e ela era adepta do Tambor-de-Mina (Candomblé). Lá no Rio Grande do Sul, pelo que sei, eles viviam com uma família de polacos, e parece que foi de lá que o Corvo aprendeu algumas palavras esquisitas, que depois ele ensinava ai para os meninos de rua, e ninguém entendia nada".

O anagrama é uma espécie de jogo de palavras, que resulta de arranjos de letras de uma palavra ou frase para produzir outras palavras, utilizando-se de todas as letras originais exatamente uma vez, e a forma correta de expressá-lo é através de uma equação, com símbolos de igualdade (=, separando o objetivo original e o anagrama resultante. No que é chamado de anagramia, que é um sistema mais avançado e sofisticado, o objetivo é ‘descobrir’ um resultado que tenha um significado lingüístico que defina o objetivo original de forma humorística ou irônica. Tudo isso, porém, não pode ser feito de maneira aleatória, pois há uma fórmula matemática para se estabelecer os anagramas de uma palavra, que é ((a-b/c)+1), sendo que "a" é igual o número do anagrama; "b" o último caractere ou a diferença da divisão de "b" por "c"; e "c" é o número de caracteres.

É evidente que nenhum dos garotos da Estação do Herval, muito menos o Corvo, tinha a mínima noção de que o que estavam fazendo, de brincaderia, era, na verdade, historicamente, uma "evolução" de um processo cultural lingüístico, cuja base era sólida e cientificamente estudada desde a antigüidade. Em função desse desconhecimento, é claro, as derivações por eles criadas não tinham mais as lógicas de palíndromo, de acrônimo ou de anagrama; mas acabaram formando algumas palavras com as quais eles conseguiam se comunicar, mesmo que precariamente, tomando "emprestado" palavras do português, principalmente as preposições, que ligam os elementos da oração; e os verbos. Vale destacar, ainda, que algumas palavras que fazem parte do glossário do "hervalês" podem ser entendidas também por pessoas de outras regiões, que não conhecem Herval d´Oeste e nunca tiveram contato com alguém que tivesse conhecimento do linguajar. A explicação para esse fato é que no nascedouro do linguajar, há palavras que, de fato, são originárias de um tipo de anagrama ou palíndromo, as quais podem ser conhecidas em outras regiões com o mesmo significado.


*João Paulo Dantas (jornalista e escritor; autor dos livros Besta Fera Capitalista (colagem lítero-musical teatral) e Joaçaba, Samba (E Faz Escola), Desde 1930 (a ser lançado em breve).